Os Dançarinos

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Libertas Quæ Seras Tamen



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Libertas Quæ Sera Tamen* - Lô Borges/Clube da Esquina nº2

“Porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos
e sonhos não envelhecem”

“Clube da Esquina nº2” é uma canção de Lô Borges, cantor e compositor mineiro. Foi lançada no álbum A Via-Láctea em 1979. A letra, escrita por Márcio Borges, irmão de Lô, traça um painel da aventura humana sob uma perspectiva jovem e ideológica. A canção, composta em parceria com Milton Nascimento, foi lançada originalmente em 1972, no clássico disco 'Clube da Esquina', um divisor de águas da música popular brasileira. O álbum, assinado por Milton e Lô, reunia um grupo de jovens músicos talentosos, capitaneados pela dupla, que se encontrava – para cantar, tocar e jogar conversa fora – numa esquina, entre as ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza em Belo Horizonte. Ali, regadas a cervejas e conversas sobre Beatles, Truffaut e política; nasceram belas canções. E porque não dizer, sonhos.

A curiosidade é que a primeira versão desta música não tinha letra. O arranjo original foi criado em torno da gravação do violão de Milton e de suas vocalizes com a melodia. Assim, a canção veio ao mundo como uma música instrumental. Só alguns anos depois a letra seria escrita, após ter sido 'encomendada' pela cantora carioca Nana Caymmi, que a gravaria no seu álbum Contrato de Separação, em 1979. No mesmo ano veio o excelente disco de Lô, A Via-Láctea, que incluía a regravação da canção feita pelo autor (desta vez com a letra). A faixa contava também com a participação de sua irmã, Solange Borges, com quem dividia os vocais. Foi esta a versão que primeiro chegou a mim, e ela veio envolta nas histórias daqueles adolescentes e na bandeira de Minas Gerais. E assim ficou no meu inconsciente. Fundo musical das imagens de Aleijadinho, dos gols de Reinaldo, dos inconfidentes e das cidades históricas, o meu universo mineiro de então.

Anos mais tarde, quando ganhei a estrada, já como músico, viajei pelo país afora e particularmente pelo interior de Minas. Tantas viagens por aquelas pequenas cidades criaram em mim uma relação de afeto com o estado, sua cultura e sua gente. A simplicidade de mãos dadas com a beleza. De maneira que, hoje, quando penso em Minas, além desta canção, logo me vêm à cabeça as imagens de suas paisagens, com todos aqueles intermináveis montes arredondados e todos os seus relevos. Quase posso sentir o cheiro do fogão de lenha. Quase posso ouvir o som do sotaque maroto. É... quase posso sentir o frio também. E, num canto recôndito da minha memória, lembro de uma menina. Uma menina que conheci pelas estradas da vida.

Foi há muito tempo. Durante um show. Não lembro o nome da cidade. Talvez até lembre, mas prefiro deixá-lo no anonimato das minhas recordações. O som corria solto quando a avistei no meio do público. Ela estava sorrindo. Certo, eu sei que é comum as pessoas sorrirem durante um show, afinal, estão ali se divertindo, mas ela sorria de uma forma diferente das outras pessoas, sorria para mim, para o fato de eu estar olhando pra ela. E o seu sorriso brilhava. Feito uma estrela. Sorri de volta. Foi um impulso. Daquele momento até o fim do show não conseguimos tirar os olhos um do outro. Hipnotizados. E nossos olhos sorriam.

Finalmente o último acorde. Fiz um sinal indicando que queria falar com ela, e fui para o camarim. Meu coração gelava cada vez que uma pessoa entrava naquela pequena sala. A espera parecia não ter fim. Até que ela surgiu na porta. E tudo em volta despareceu. Num sobressalto. De perto ela era mais linda ainda. Seus cabelos negros e lisos em contraste com seu vestido vermelho, mas nada disso importava. Eu já tinha viajado por seus olhos verdes adentro. Já conhecia toda a sua beleza. Trocamos saudações triviais. Tímidas. O mundo exterior parecia desconectado com o que eu sentia. Em seguida falei: "sei que pode parecer estranho, mas estou com essa sensação... como se eu te conhecesse desde que o tempo existe". Ela riu. Encabulada. E abaixou a cabeça antes de me olhar no fundo dos olhos e dizer: "eu também".

De lá fomos parar numa praça próxima ao hotel. Sentamos num banco e ficamos conversando por horas a fio. Apenas as estrelas nos ouviam enquanto trilhavam seus caminhos pelo espaço. A todo momento a minha razão exigia que eu a beijasse, mas minha emoção não tinha essa necessidade. Bastava-me estar ali. Perto dela. E falamos sobre nossas vidas. E contei tudo que eu tinha feito até então, as coisas boas e mesmo as coisas erradas. E ela também falou de si, de sua vida, de seus planos e sonhos. E poderíamos ficar ali para sempre. E ficamos. Mas o tempo nos traiu. Os primeiros raios de sol caíram sobre nós. Mais um dia que chegava. Fora da nossa hora. Ficamos em silêncio. Era o momento da despedida. Uma tristeza me invadiu na forma da certeza de que eu nunca mais a veria. Abracei-a bem forte. Um abraço longo e terno. Eterno. Ela disse que aquilo não era uma despedida. Estaríamos um com o outro para o resto de nossas vidas, nas nossas melhores lembranças. Em seguida abriu a bolsa, pegou um pequeno objeto e o colocou na minha mão, me deu um beijo na testa e partiu para o sempre. Eu simplesmente me virei, e fui na direção do hotel. No caminho abri a mão e vi o pequeno objeto que brilhava. Um crucifixo de prata. O sorriso voltou ao meu rosto. Eu não tinha nenhum endereço ou telefone anotado. Não tínhamos dado nem um beijo. Mas eu a tinha para sempre. E fui em frente. Livre.

As lembranças das minhas viagens com as bandas que integrei são meio etéreas. Como se tudo fosse um grande sonho. E é mesmo. Quantas histórias, pessoas e lugares se desmancharam no ar. Feito fumaça. Mas aquela menina continuou. Não sei por onde ela anda, e nem preciso saber. Nunca mais a vi, e nem pretendo. Ainda guardo aquele crucifixo comigo, um pequeno amuleto escurecido pelo tempo. E ainda me lembro dela. Assim como sinto o cheiro do fogão a lenha e viajo pelas estradas do interior de Minas. Porque tudo são lembranças e lembranças são feitas de tempo. Porque todos somos homens e homens são feitos de sonhos.



*'Libertas Quæ Sera Tamen' é uma expressão em latim estampada na bandeira de Minas Gerais que pode ser traduzida como 'liberdade ainda que tardia', lema da inconfidência mineira.

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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Desesperança

debaixo do chapéu, cabelos brancos
feito os pombos que ciscam o chão
o pensamento parte em revoada

o velho cruza a rua de mãos dadas
com a sua solidão
olhos fixos que não dizem nada

pra onde vai o tempo?
pra onde ele leva o que se perdeu?

uma mulher ajeita o vestido
sujo como o pano que esfrega o chão
ela carrega no rosto um sorriso gasto
que cabe no tubo da pasta de hortelã

ela evita o coração
mas o espelho não evita o amanhã

o grito do tempo ecoa
ele diz esperança...